Cultura Poesia

MEMÓRIAS DA CASA DO CÁRCERE

Poema do poeta bajeense Ernesto Wayne do livro Poemas Colhidos, livro organizado pelas jornalistas Naira Perdomo Wayne e Sabrina Alves Lehmann

Por Gente Jornal

31/03/2020 às 18:20:38 - Atualizado há
Foto: Divulgação

Eu sei, não serão memórias

Como as tuas, Graciliano:

És tu nuns quantos volumes,

Sou eu em minguados versos,

Mas mesmo amargor de cárcere

       Ano de 64,

Tarde de cinza, era abril;

Então estávamos presos,

Presidiários todos nós,

Entre grades corrediças,

Barras de aço verticais:

Era mais um vitral gris

Dos que já vira e viria...

Entre sardônico e sério,

Eu dizia que nós todos

Mortos estávamos já,

Mortos, porém, sem saber

Mortos de vez, mas atônitos

Sem saber de seu morrer

Envoltos em cobertores

(Abrigos puídos, gastos),

Em torno dos pulsos temos

Não algemas de algodão,

Camisas de forças apertam

Alma , sonho e o coração...

As almas perambulando

Nos corredores onde há

Água verde dos detritos

Que vêm à tona do piso

Em chão de líquido e limo.

Havia jogo de damas,

Peças presas como nós

No tabuleiro quadrado,

Se se jogava baralho,

Eram rei, sota , cavalo,

Naipes de espadas e bastos,

Mesmas coisas que portavam

Sentinelas, carcereiros:

O ás de pau é porrete,

Cacete de cartolina,

É polida acha de lenha,

Ou feita toda em borracha

Que verga e que se distende

Nos lombos em que desenha

Vermelhos vergões de listras

(São grades feitas de carne?)

Pra fazer o vivente

Contar que fez, que não fez,

Pois, se fez, por que fez?

E se não fez, por que fez?

O ás de pau é bastão,

O ás de pau é a clava,

Cassetete em cinturão

De goma compacta e fina.

Havia, em cartão de vísparo,

Celas formando xadrez

E, como nós, numeradas

As pedras que ocupavam

Cadeia de papelão...

Dormíamos empilhados,

Camas por cima de camas,

Beliches como gavetas

Ao redor de todo o quarto

Como vivo cemitério;

Outros dormiam no chão

Como mortos sem caixão...

Li livros que nos traziam:

A Bíblia de cabo a rabo

(Mais a rabo do que a cabo)

Era mansão habitada

Pelos mortos, Dostoiévski...

Era casa do diabo

Era o dia do diabo

Era a bodega do bode

Certo é que não se pode

Soldar sólida corrente

Com elos feitos de gente...

Mas se formará corrente

Com as mãos dadas do povo

Que farão com que arrebente

Aquela triste corrente,

A corrente aterradora

Que parecia serpente:

Pente de metralhadora...

Fonte: Redação GJ
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